Monday, February 24, 2014

INFINITO FINDÁVEL


O tempo infinito um dia se findará. Mas restará a memória da longa estrada por onde caminhei desde os gritos de “Aúa” que me assustavam quando eu caminhava pelas mãos da ama até a pracinha florida pelos flamboyants da minha infância. “Aúa”, a menina excepcional  prisioneira pela incompreensão familiar, cujo som do inconformismo saia das frestas da janela.
Não cumprirei um roteiro. Deixo para quem suportar a leitura que o faça. Textos, contos, fatos e experiências são elos da corrente da minha vida que surgem do baú imaginário e que aqui ficarão desordenados em seus momentos caleidoscópicos, ora formando intrigantes desenhos, ora apenas cacos. Mas,  sobretudo, sem pretensão literária.
Mas uma história pede um início e ele surge no...
CASARÃO
No centro de um grande terreno cercado por dezenas de árvores frutíferas, o casarão brigava por trás de suas paredes aqui e ali já descascadas os três salões, onze quartos e a biblioteca de milhar de volumes e traças do tio esquizofrênico. A parte de serviços tinha no fogão da cozinha minha principal atenção pelo cheiro da banana dourada e caramelada cujo ponto certo era determinado pela minha avó cega e bondosa.
Pela cozinha, tinha-se acesso ao quintal através da escada de granito, com gradil de ferro. No quintal o grande tacho de cobre com a goiabada fervente enriquecia ainda mais de aroma o que por mim era visto como pomar e jardim zoológico, tantas eram as árvores frutíferas e pelos pequenos animais trazidos ainda vivos pelos tios caçadores.
No corredor, o telefone que raramente tocava. Na copa, a velha mesa quadrada cercada de não menos velhas cadeiras para onde éramos chamados às refeições. A geladeira GE completava o mobiliário e revelava o patamar superior da burguesia da época.
Uma escada sinuosa de madeira com o corrimão lustrado pela bunda dos netos da matriarca levava moradores e visitantes ao porão impregnado pelo cheiro do sabão português esfregado na lavanderia de dois grandes tanques de cimento pelas mãos vigorosas da lavadeira Guilhermina nas montanhas de roupas dos moradores do casarão e dos internos do Ginásio Vera Cruz fundado por meu avô João Autto. E no porão, o ir e vir do ferro a carvão de Acácia, a passadeira de um único cântico repetido horas à fio – “tão longe, de mim distante, onde irá, onde irá meu pensamento”. O pensamento de Acácia ia para o marido cego José, cuja chegada era anunciada  pelas bengaladas na parede descascada do casarão.
Era no porão que ficavam quatro dos onze quartos espaçosos, o banheiro dos empregados com a banheira esmaltada focada pelo meu olhar no buraco da fechadura e uma despensa com a chocadeira, para onde iam ovos de germinados. Passadas algumas semanas as cascas iam sendo abertas pelos bicos dos pintos que tornados frangos iam para a panela, complementando nossas refeições. Só as frangas sobreviviam à chacina para que outros ovos fossem geminados por “Sultão”, o galo senhor do terreiro e do canto nas manhãs da minha infância.
A sala de jantar em tons amarelo e dourado e suas belas sancas revelava ainda certo luxo no mobiliário, com a mesa para dezoito lugares, dois grandes etagères com tampos de mármore verde rajado e a cristaleira a reunir serviços de cristal Baccarat e Saint Louis. Finas porcelanas de Limòges e Rosenthal nunca usadas nos muitos anos em que por lá estive eram mantidas a sete chaves nos etagères.
A sala de visitas, de móveis negros Leandro Martins, era forrada de tecido de seda grená estampado com flores de Lys douradas. O mesmo tecido forrava poltronas, sofás e cadeiras. A destacar, o par de quadros retratando meus bisavós maternos, João Augusto de Macedo Soares e Gertrudes, que mostravam o talento do meu avô João Autto por seu domínio com os pincéis que muito comoveu os sogros retratados. E que despertaram ainda menino minha paixão pela arte.
À sala de espera era do mesmo tecido em tom azul escuro, com as mesmas flores de Lys estampadas. Poltronas, sofá e cadeiras, igualmente forradas com o tecido que cobria as paredes, a mesa central e um aparador de pés altos e torcidos no estilo “Manoelino” completavam o conjunto. Grandes cortinados de renda e seda escondiam portas de acesso e janelas de onde se via o jardim de uma única roseira e grama crescida sinalizando o abandono.
Todas as portas da área social davam para a grande varanda de azulejos franceses e, desta, para as duas escadas de mármore que nos levavam ou ao quintal ou ao portão principal.
O silêncio das noites era quebrado pelo pio da coruja, pelo sibilar do vento e pelo farfalhar das folhas secas nas caminhadas dos que saiam em busca dos prazeres da boêmia. Dentre eles, os tios mais moços, apareciam no casarão com Noel Rosa, que não cheguei a conhecer.
Era um tempo de histórias e fantasmas. Das fugas de Honorina, o bicho-preguiça, para o quintal do vizinho “Cuco”, que aparecia na janela gritando que fossemos buscar o animal inofensivo para que voltasse ao
 ipê do quintal.


BANHOS MEDICINAIS

Olhava o mar e não entendia o movimento das marés... Como ele poderia curar-me da dispnéia provocada pela asma que me atormentava? Por recomendação médica era levado à praia de Copacabana pela negra Orumba Paracatu Mandina, a neta de escrava africana que fora comprada para serviços pelo meu bisavô, senhor de terras em Saquarema.

Olhos perdidos no horizonte azul e o pestanejar com as ondas explodindo antes de chegarem mansamente a meus pés, acariciando-me com sua espuma. Mas o mar me metia medo... Um medo que me queimava o peito como os gritos de “Aúa”... Distraia-me em olhar para as papadas quando molhados que se formavam nas entre pernas das banhistas, em seus maiôs de malha de lã.

Alfabetizado muito novo no Ginásio Vera Cruz fundado por meu avô, lia os jornais, atendo-me ao diário de “Giselle, a espiã nua que abalou Paris”, publicado no vespertino carioca “Diário da Noite”. A compra dos jornais era uma de minhas tarefas. O prazer da leitura das sacanagens de Giselle com os nazistas compensava a caminhada até o Largo do Maracanã, próximo ao morro da Mangueira para onde também ia juntar-me a molecada para as peladas. Péssimo com a bola nos pés, pegar no gol era minha sina pela qualidade de ser o dono da bola.

Tempo das manchetes de uma guerra só sentida pelo racionamento do pão de tostão da “Padaria Colombo”, uma homenagem equivocada do “seu” Joaquim ao descobridor do Brasil. E das conversa dos adultos sobre os valores nutritivos das batatas que alimentavam famílias inteiras durante a guerra, a justificar a sua presença sempre à mesa, fossem fritas, cozidas ou assadas. Tempo dos meus pesadelos com os ratos que infestavam o casarão, influenciado pelas narrativas de que serviam de alimento aos guerreiros famintos. Estranho mundo que fazia guerras pela paz, formando novos impérios. E despersonalizando povos milenares em suas tradições.

Crescendo, fui ganhando o mundo negado a “Aúa”. Pela voz de Orumba Paracatu Mandina, conheci o canto triste dos negros de quem fora roubada a liberdade.

Um dia qualquer dos anos de minha infância Orumba sumiu. A falta era explicada pela morte. Liberta pela Lei do Ventre Livre, morrera de nó nas tripas depois de sofrida prisão de ventre. Quanta contradição!



Sunday, March 11, 2012

A CREMAÇÃO


O corpo ainda quente, papa-defunto à postos, lágrimas a escorrerem pela face da irmã, suspiro de alívio do marido pelo desenlace e... O cunhado toma a palavra.
 
Pigarreia e solene defende a última vontade da morta:

- Temos que cremá-la. Matilda manifestou isso em cartório, cumprindo na época o que determinava a Lei.

A concordância é geral, mesmo considerando a fila de espera, com data no forno só para a semana seguinte.

Segue-se a penúltima vontade, entre outras da lista deixada por Matilda.

A palavra é dada ao sobrinho Euzébio, tido e criado como se filho fosse. Pragmático, colocou para todos suas considerações:

- Parece-me extravagância o envio das cinzas para serem dispersas nos jardins das Tulherias. Tia Matilda só esteve em Paris uma única vez e assim mesmo num pacote turístico. Não sei onde ela foi buscar a ideia de baixar o espírito de Catarina de Medicis e plantar seu tempo livre agora por lá. Por que não Praça Paris? Com o euro nas alturas, vai custar uma nota...

Imediatamente é interrompido por Genoveva, a irmã a quem Matilda só tratava por Geneviève:

- Poderíamos mandar a urna pelo Sedex para a Lucinda. Não era ela a grande amiga dos tempos do Sacre Coeur de Marie?

As más línguas diziam que Lucinda apaixonara-se pela baguette do atual marido François e fora de mala e cuia para Paris, gerenciando a brasserie do marido, na Rue des Ecoles.

- Sedex?

- E por que não? Pelo Sedex 10 a entrega é rápida.

Pessimista, Alfredo, o outro cunhado, faz considerações sobre os serviços dos Correios:

- Vocês não leem mais jornais? Várias reclamações de que os envios não chegam ao destino...
- E alguém lá vai querer ficar com cinza de defunto desconhecido?

A sugestão do Sedex é aclamada por unanimidade.

Genoveva pega o celular e liga para Lucinda, a grande amiga do Sacre Coeur a quem solicita que acolha a urna e espalhe Matilda, nos jardins das Tulherias. A amiga pede apenas que aguardem um retorno, pois terá que falar com François, seu marido. Afinal, acolher mais uma mulher em casa, mesmo sendo em cinzas, não é uma decisão a ser tomada unilateralmente.

Tudo caminhava às mil maravilhas, não fosse a última das últimas vontades de Matilda de que as cinzas fossem espalhadas ao som da “Marseillaise”.

O sobrinho, sempre muito atual com as novas tecnologias não vê dificuldade na era dos Ipods, mas lembrando de que o patriotismo francês pode levar a estudantada da Sorbonne a um levante pelo uso do hino num evento funéreo particular.

Todos concordam que esta vontade fique esquecida pelo transtorno que pode trazer a François e Lucinda.

O velório não foi dos melhores aos olhos do papa-defunto. Depois que inventaram a cremação, com longas filas de espera, o movimento caíra muito e os investimentos também. Muito poucas flores e coroas e caixões de poucos entalhes e nenhum bronze.

- Já não se tem mais defunto como antigamente.

Dia da cremação, só a família convidada desmotivara os amigos de Matilda a lhe prestarem as últimas homenagens. Muitos telegramas e poucas presenças no velório davam a impressão de estarem todos de férias, tantas às desculpas com viagens.

No dia seguinte, lá estava o circunspecto cunhado, mas nem por isso sem o comentário jocoso, a receber a urna:

- Finalmente Matilda chegou ao peso com que tanto sonhava. Quem diria que com aquele corpo fosse caber numa caixa desse tamanho...

E foi com Matilda debaixo do braço para a mansão dos Miranda Junqueira.
Fútil, como sempre fora, a amiga Heleninha fez considerações sobre a caixa:

- Matilda merecia uma urna melhor. Vi uma num antiquário, lindéeeeesima, com aplicações de pedras semipreciosas. O superlativo era de uso comum no vocabulário de Elisinha e ela não deixaria passar em branco a simplicidade da caixa, chegando a compará-la às da sapataria de grife onde se abastecia de saltos altíssimos.

- Onde coloco a urna?

- Ponha em cima da mesa...

- Mesa de jantar?

Era mesmo de espantar imaginar as cinzas de Matilda como décor.

- Na cadeira ou no sofá é que não pode ser, pois acabariam sentando
em cima da Matilda.

E por lá ficou Matilda até seguir pelo Sedex rumo a Paris, deslocada sempre nas horas de refeições para um canto da sala, onde, vez por outra, era lembrada pelos gritos de que “Mimoso”, o gato, iria urinar nela...

Sunday, April 17, 2011

UM MORTO NA RUA


- Tão jovem...


- Também morre...

- É conhecido?

- Até o momento um morto anônimo. Pela boa aparência deve ter documentos. Mas só a Perícia pode mexer no corpo.

A observação do senhor ao seu lado chama a atenção.

- Assalto?

- Não. Natural mesmo?

- O senhor acha natural.

- Não, minha senhora, eu não acho nada. É o que dizem.

- E agora?

- Agora é esperar o rabecão, a autópsia, a geladeira do IML, até que a família o enterre.

- Que frieza... Como a família vai receber isso?

- Geralmente já dentro do caixão, coberto de flores e entregue na capela para o velório, onde vai rolar um bate-papo, intercalado por algumas piadas para aliviar a tensão.

- Sei... Sei... E a família depois?

- Se tiver, vai pagar o papa-defunto, receber condolências, mandar rezar missa de sétimo dia, de mês e de ano, quando, nesta última, nem mesmo o defunto será lembrado pelos amigos. É possível que nem mesmo a alma dele esteja presente, diante de tantas formalidades.

- Será que vão cremar?

- Pode ser... A ele pouca diferença fará, pois com esse calorão que está fazendo e este terno que está vestindo...

- É mesmo. Por que de terno no calçadão?

- Devia estar esperando o frescão para ir trabalhar quando caiu duro.

- O senhor viu?

- O frescão ou a queda?

- A queda, ora... Nem gritou ou gemeu?

- Sinceramente, não ouvi. Havia uma gritaria próxima, mas não era do defunto. Era de um assalto a um banhista.

- Já tem quanto tempo que ele está aí deitado?

- Deitado não, minha senhora. Mortinho da silva...

- Que seja...

- Deixa ver... Uns quarenta minutos, acho.

- E o senhor está aí em pé esse tempo todo? O senhor o conhece?

- Nunca vi mais gordo. Aliás, deve ter sido a gordura que o matou. E quanto a estar em pé esse tempo todo é melhor do que estar deitado como ele.

- É verdade.

O vendedor de pastéis se aproxima, curioso.

- Morreu por quê?

- Depois de ter comido um pastel de camarão desses que vendem na praia?

- O senhor tá me gozando?

- Não, divagando sob a causa mortis...

- O senhor é médico?

- Não, advogado.

- Da família dele?

- Não, da minha mesmo.

O morto começa a se tornar um acontecimento. Mais e mais pessoas se aproximam.

- O que está havendo aqui? Choque de ordem?

- Não, apenas um morto

O vendedor se afasta temendo que aquele morto resulte numa proibição da Prefeitura de vender seus pastéis de camarão na praia.

- Sorte não ter sido no meio da rua. Seria esfrangalhado por essas vans em alta velocidade.

O comentário tem a aprovação de dois usuários de vans.

- Não faria a menor diferença para ele já morto. Mas o atropelador estaria ferrado.

Já agora o morto ficara num segundo plano, dando vez ao trânsito caótico, má iluminação das ruas, buracos e má gestão municipal, com respingos da estadual.

- A sorte foi ter morrido. Senão ia ter que encarar maca em fila de hospital.

- Como sorte?

- Ora, morrer todos morrem um dia. Ala jacta est.

- O senhor é professor de latim?

- Não, sou geólogo. E no momento faço escavações arqueológicas.

- No Leblon?

- Não, no interior da Bahia, onde tem um sítio arqueológico com alguns ancestrais nossos.

- Herança de família? Produz o quê?

O arqueólogo mostra-se irritado não só pelas perguntas da madame recoberta de protetor solar, mas também pelos empurrões dos curiosos. Antes de afastar-se fuzila:

- Pior que morrer é a ignorância.



UM MORTO NO NECROTÉRIO



- O trezentos e vinte e dois está na geladeira?

- Tá. Acabou de ser entregue pela autópsia.

- Tem um cara aqui para identificar o defunto.

- É parente?

- Como saber se ele ainda não identificou?

- Manda entrar e tira a panela do freezer...

- Ok, ok... João, solta o trezentos e vinte e dois e põe no balcão.

- É ele, sim. O Altamirando, que Deus tenha piedade de sua alma. O que faço agora? O que dizer a minha irmã Cleuza?

- Meu senhor, nessa hora o melhor a dizer e que morreu e está sentado ao lado do Pai Nosso.

- Mas minha irmã é agnóstica?

- Ag o quê? Vai ali ao guichê, procura o Fragoso, que ele lhe orienta como preencher a papelada para liberar o corpo. E não se esqueça de colocar esse “ag” aí no espaço referente a filiação. Esse pessoal da Santa Casa adora criar dificuldades.

- O senhor Fragoso é funcionário?

- Não. Papa-defunto. Gente fina. Os serviços são bons e é dos mais baratos. Caixão dele é de madeira de Lei e não desses de pinho, vagabundos. E as flores não são recicladas como a de muitos que têm gente no cemitério recolhendo coroas e flores que ficam no mausoléu depois do sepultamento.

- Boa tarde, senhor Fragoso, sou tio do Altamirando, o trezentos e vinte e dois, e queria que o senhor me ajudasse no preenchimento da papelada e fizesse o orçamento dos custos para enterrá-lo.

- Vamos lá ao guichê e depois conversamos. Seu nome, por favor?

- Carlos Siqueira, mas sou mais conhecido como Carlão.

O papa-defunto olha o volume do tio e já pensa no gasto de madeira de Lei para o caixão de Altamirando.

Papelada preenchida e o convite para um café.

- O senhor quer enterro de primeira?

- Não precisa ser de primeira. Altamirando era despido dessas vaidades.

- Como? Ele já tinha idealizado como seria o enterro dele?

- Não. Apenas acredito que ele não investiria muito no seu próprio funeral. Digamos... Um enterro tipo classe média iria satisfazê-lo.

- Média A, B ou C? A média hoje anda subdividida.

- Pode ser A mesmo.

- Quantas coroas?

- Ah, são muitas. Têm as tias, as amigas das tias... Altamirando era muito querido por todas.

- Não é isso. Estou falando de flores.

- Uma só para todos os tios e primos. Os tempos andam difíceis e Altamirando era arrimo de família.

- Tem preferência por alguma flor para cobrir o corpo?

- Deixa ver... Hummm... Altamirando gostava muito de cravos. De vez em quando espetava um na lapela. Pode ser cravos.

- Temos caixões de peroba. São mais baratos que os de cedro e fazem o mesmo efeito. Quer alças de bronze? Que sejam entalhados? Garanto a qualidade do verniz. É boneca.

- Boneca não. Altamirando era espada.

- Me referi ao verniz, senhor. Não pré julgo meus defuntos.

- Fica tudo ao seu critério. O que eu quero mesmo é sua orientação e quanto vai me custar tudo, inclusive com gorjetas.

- Vejamos... Prá ficar freguês, faço tudo por oito mil reais.

- Seu Fragoso, não faço a menor questão de ficar freguês. Por sua atenção e gentileza, tá fechado. Tá aqui o sinal.

- Desculpe, senhor Carlão, não trabalho nem com sinal, nem com cartão de crédito. Estou vendo que o senhor é saudável, mas não somos donos de nossos destinos. E já houve alguns casos com colegas em que o responsável passou desta para melhor, antes de quitar o débito.

- Entendo... Entendo...



UM MORTO NO VELÓRIO

- Quem diria? O nosso Altamirando morto na praia...

- Na praia, não. No calçadão, pois o vôlei ele trocou pelo chope já faz algum tempo...

Na manhã daquele janeiro de um ano que se prenunciava excelente, Altamirando abrira o jornal na página do horóscopo: “Leonino com ascendente em Saturno. Momento ideal para organizar sua vida. Excelente no terreno sentimental. Saúde boa. Cor favorável o azul”. E ali estava ele. Morto.

Alguns amigos começavam a chegar e sempre com o lugar comum:

- Tão moço, coitado... Morreu de quê?

- Parada cardíaca.

- Sim, parada cardíaca é do que todos morrem. Não conheço um caso que o cara tenha morrido e o coração continuasse batendo.

Dona Cleuza na cabeceira não parava de espantar a mosca que insistia em aterrissar no nariz de Altamirando, enquanto sua irmã Celeste repunha o filó a cada destampada feita por alguém curioso. Na porta, Carminha, a mais nova das tias recebia os pêsames.

- Grande perda... Grande perda... Fará muita falta o nosso Altamirando.

A frase dita pelo primo Benedito tinha a aprovação dos demais membros da família já agora sem o arrimo.

Não fosse uma ou outra abordagem sobre os excessos que cometia na comida e na bebida, é a coisa ficava

por aí.

Pesaroso, lá estava seu grande amigo Isaac, que perseguia o milhar que o pai trazia no braço, jogando diariamente no bicho, sem que nunca fosse premiado. Sua presença no velório, além de prantear o amigo morto, tinha também por objetivo anotar o número do jazigo para mais uma investida.

- Magali veio?

A ex-quase-futura-noiva era aguardada. Ela o deixara quando se viu substituída pelas amizades que o arrastavam para o boteco e para obesidade.

Adepta de academia, a super malhada Magali era uma referência de elegância e beleza naquele mundo, com seus óculos piratas de grife, adereços e saltos bem altos que davam ao seu caminhar grande sensualidade.

- Muita areia para o caminhão do Altamirando, dizia o invejoso Antero ao vê-la adentrar a capela.

Já havia um número razoável de parentes e amigos se abanando naquele calor infernal quando chegou Nepomuceno, o Nepô das rodas boêmias do Leblon. Chegou trôpego, como de costume, e saudou todos com um “merry christmas”, pois velas e flores lhe traziam as imagens de alguns lúcidos natais de sua vida.

- Tirem o Nepô daqui!

O alarme soou com atraso de alguns segundos, pois uma golfada de vômito causara um tsunami no caixão de Altamirando, para satisfação do papa-defunto Fragoso e desespero do tio Carlão.

Novas flores, maquilagem, o papa-defunto borrifando um Bom Ar flagrância violeta e... Altamirando pronto para ser enterrado.

Findas as rezas, preparativos para o fechamento do caixão e volta Nepô à capela, trovejando:

- Ninguém vai asfixiar meu amigo. O primeiro que tentar, leva com a porra desta tampa no focinho.

Puxa daqui, empurra dali e o tio Carlão de olhos arregalados não vendo a hora de novos custos.

Das ameaças, Aristides fantasiava ainda mais a cena aos gritos de que haviam matado o amigo ao vê-lo com o crucifixo na perna e uma vela espetada na boca entreaberta.

O sino batia anunciando a saída do corpo e os amigos se afastando das alças do caixão.

- Em vida, um mala difícil de carregar. Morto, nem pensar, com esses seus cento e muitos quilos. Que Deus o tenha!

Por falta de carregadores familiares, foram chamados funcionários da Santa Casa para ajudar.

O que parecia o chefe da equipe convocou:

- Vamos lá, pessoal. Estão precisando de guindastes humanos para deslocar o defunto.

O grupo era assustadoramente esquelético.

- Com esse pessoal vai dar zebra...

A menção de um bicho antenou Isaac já de posse do número do jazigo cuja dezena era a do cavalo. A coincidência abriu-lhe um sorriso de esperança.

A previsão do acidente se confirmou no estrondo provocado pela queda do caixão, deixando tio Carlão lívido e já contabilizando o que seria o mais caro funeral de sua vida.

- Deixa que dou um jeito. Não lhe disse que o caixão é dos bons. Nenhuma avaria que impeça de recolocá-lo no carrinho.

O papa-defunto já agora satisfeito com os números era todo delicadeza.

- Por favor – suplicou o tio Carlão – vamos agilizar tudo rapidinho e encová-lo antes que depredem a Capela e eu seja processado pela Santa Casa.

Carlão deixa o cemitério e lá no alto do gradil a frase “Revertere ad locum tuum”. Sinalizou para o taxi antes que o revertessem para aquele lugar diante do estafante dia.




Tuesday, April 12, 2011

A HERDEIRA


- É o cúmulo!
Os policiais do serviço de imigração entreolharam-se quem seria aquela mulher que resistia a ficar nua para ser revistada no Aeroporto John Kennedy. A cidade de Nova Iorque não podia se expor a alguém que chegara com 22 malas suspeitíssimas.
- Eu, Carla Fantagrossi, do international jet, às voltas com esses dois brutamontes a quererem tirar minha calcinha em atitudes voluptuosas que melhor se enquadraria num mènage. Evocarei a 5ª Emenda nos tribunais e, se necessário for, irei a Suprema Corte cumprindo o trotoir judicial...
Os policiais olharam-se espantados. Mènage? Trotoir? O que seriam essas duas palavras carregadas de um sotaque francês ditas pela criatura. Só podia ser algum código de traficante, daqueles usados na Casa Branca para adentrar no Salão Oval a serviço do ex-George II.
Carla Fantagrossi chegara não só com 22 malas, mas com algumas coordenadas dadas por seu advogado Spencer Tracy, um sabido vigarista que, nas horas vagas, atuava como hackers nas redes sociais. Fora ele que descobrira ser Carla herdeira dos milhões de dólares deixados em testamento por seu tio Robert, executado na Califórnia pelo exterminador do futuro Arnold Schwarzenegger. Robert matara a mulher tomado por uma violenta paixão pela milhardária Irene Singer, da família dos inventores da máquina de costura que chuleava, chuleava, mas não chegava aos finalmente por ser ele casado.
Duas versões dadas aos milhões de Robert circulavam nas altas rodas frequentadas por nomes expressivos como os dos brasileiros Bike e Nike Batista e Donald Tramp, este notabilizado na canção “The Lady is a Tramp” por Frank Sinatra. Bike descobrira as altas rodas por força de seu próprio nome e Nike chegara ao oitavo lugar no ranking por suas caminhadas pelas montanhas de Minas Gerais, onde descobriu o ferro e ferrou a Vale do Rio Amargo.
Do lado de fora do Serviço de Imigração, Irene Singer dava adeusinhos para a amiga Carla. Como não é incomum, grandes amigas até descobrirem-se candidatas aos milhões de Robert. Fora do testamento, Irene ficara dentro dos milhões de dólares graças ao seu casamento em Las Vegas, dias depois do serial killer ter matado a mulher com um hamburguer estragado do Mac Donald, da cadeia dirigida pelo Pato.
Carla Fantagrossi era “uma uva”, tratamento dado as mulheres em tempos de antanho e hoje substituido por “um tesão”. Nesse ítem, apesar de não costurar para fora, Irene Singer nada ficava a dever, o que , aliás, seria paradoxal pela fortuna que possuia.
Ao lado de Irene, fazendo-a rir, o baiano Caetano, da famosa dupla sertaneja Gil&Caetano, que ela conhecera num trio elétrico em El Salvador, onde os trios elétricos não tocam o chatérrimo axé de Ivete Sem Galo e Daniela Studebaker. Caetano estava em Nova Iorque para apresentar-se no Madison Square Garden para uma platéia de brasileiros tantos eram por lá a comprar muambas na rua 42. Procedentes de Miami e Paraguai já estavam manjados pela Alfândega brasileira.
Apesar dos protestos, A HERDEIRA, foi embarcada de volta à realidade de Petrópolis, uma localidade abaixo da linha do Equador, soterrada e transformada num lindo planalto depois que suas montanhas despencaram mais que os peitos das atrizes da Globo que não se socorrem com o cirurgião Antonio Pitangueira para serem siliconadas.
O retorno de Carla Fantagrossi acabou por trazer a luz as falcatruas do advgado hackers Spencer Tracy. Quanto a Irene Singer voltou às altas rodas montada numa bike do Bike. Mas aí já é outra história.





Saturday, November 08, 2008

UM RIO DE MUITAS SAUDADES

Dizer que sou saudosista me envaidece. Afinal, sou do pão do tostão, moeda da qual muitos dos que me lêem sequer ouviram falar. Adquiridos numa das muitas fornadas na Padaria Colombo, cujo proprietário português misturou a História e resolveu homenagear o descobridor do Brasil. Mas se misturou a História, justiça seja feita, na farinha não havia bromato.

Era um Rio sem pressa, com bondes da Light cujos trilhos vivem sepultos pelo asfalto por onde hoje vidas se perdem na velocidade por vivê-las. Mas como as diferenças sociais sempre existiram, não seria este meu Rio de viva memória que deixaria de ter o ''taioba'', um bonde misto de preço bem mais barato, transportando, além dos passageiros, os balaios de verduras, frutas e flores que iam sendo distribuídas durante o percurso. Para os mais afortunados, a Light oferecia seus ônibus cinza competindo com as primeiras viações que surgiam para começar a dar pressa à vida dos cariocas.

Violento, afirmo, não era. De pior, tínhamos o Zé da Ilha, inimigo público número 1, cujo crime maior fora ter aberto uma navalha e passado nas pernas dos passageiros que viajavam no estribo do bonde ''Vila Isabel''. O feito teve como palco o Boulevard, hoje Avenida 28 de Setembro, cuja data, confesso, não me traz nenhuma lembrança.


Imagino que nem tenham sido muitos os estragos feitos por Zé da Ilha, afora uma e outra calça dos ternos de casimira inglesa, tropical brilhante ou linho S-120 que, passadas nas mãos de uma boa cerzideira invisível, não tenham sido recuperadas. Zé da Ilha morreu numa troca de tiros com a polícia, à época de boa pontaria, pois não houve registro de bala perdida e achada no corpo de alguém.


Saudades de um Rio de casarões cercados de pomares, com mangas rosa, espada e carlotinha, entre goiabeiras, caramboleiras, abacateiros, nespereiras, abieiros e sapotizeiros, por onde esvoaçavam pardais e rolinhas de dia ou morcegos à noite.


Um Rio perfumado pelos jardins onde floriam jasmins e roseiras.


Um Rio com o mar de Copacabana, aonde chegávamos para os banhos medicinais que complementavam tratamentos homeopáticos, depois de saciados pelo suco de laranja da "Americana", do Hotel Avenida.


De ruim, a bem da verdade, os maiôs de malha de lã a formarem papadas nas entre pernas das banhistas.


Um Rio de um Salgueiro, de onde saiu Bala, compositor e engraxate, a batucar com o pano que lustrava nossos sapatos os sambas que cantarolava.


De uma Mangueira, cujo marco era o Esqueleto, onde hoje é o campus da UERJ, no Maracanã. Mangueira que deu Cartola, Neuma e Zica.


Era um Rio horizontal, inundado de sol e chuva. Havia lama barrenta, mas bem diferente do mar que hoje nos assusta inundando os altos escalões dos governos.

ROSÁRIO


I
DOLOROSOS
O bar está ali há tanto tempo que nem importa saber sua idade. Surgiu com a cidade. Discretamente, de um ângulo privilegiado da praça, frente à porta lateral da igreja, a tudo observa. As paredes, grossas de sucessivas pinturas, contam a cada camada histórias de diferentes épocas e proprietários. Duas portas de madeira carcomida, fechadas respeitosamente diante de incontáveis enterros e procissões, deixam entrever o interior escuro e abafadiço.

Assim que os olhos do visitante se acostumam à penumbra, revela-se um enorme balcão, igualmente sem idade, estendido junto ao fundo e a uma das paredes laterais. Ao longo da outra parede, cinco ou seis mesas bambas com suas cadeiras de assentos lustrados pelos freqüentadores que se reúnem nos finais de tarde em comentários sobre as nunca mais de duas ou três raparigas do bordel de madame Dominique, uma polaca que por ali chegara fugida das botas nazistas lá pelos anos 30.

A parca iluminação não esconde o pó e o bolor das prateleiras, repletas de um amontoado de garrafas e copos engordurados. Atrás da máquina registradora, uma pequena imagem de Nossa Senhora Aparecida e o pôster do Palmeiras Campeão Paulista de 1976 disputam, lado a lado, as homenagens das flores de plástico dentro do copo. Os segundos de pouco silêncio eram quebrados pelo irritante tic-tac do carrilhão que devorava as horas dos bêbados obrigados ao retorno do tédio domiciliar, com as mesmas reclamações seculares de que “aquilo não era vida”.

O cheiro das frituras engorduradas nada dizia de que fossem bons os tira-gostos que ainda assim eram consumidos por um ou outro desavisado operário que por lá passasse a caminho das obras que teimavam em tentar fazer crescer a pequena São Benedito do Bom Refúgio, nascida do parto das fugas dos escravos, seus primeiros moradores que por lá se escondiam.

Sentado numa daquelas mesas, protegido pelo lusco-fusco, um observador atento poderia fazer a crônica diária da cidade: qual beata está adoentada e não compareceu à missa das sete; que cidadão embarcado no ônibus das sete tem negócios a tratar na capital; quanto tempo durou a confissão da mulher do prefeito; qual será a próxima geração de boêmios que flana pela praça, matando as aulas; todos os casamentos, batizados e enterros.

E, quando as pequenas corujas deixam a torre do sino, quais os incautos casais que trocam trêmulos beijos nos desvãos das paredes da igreja zelosamente cuidada pelo Padre Cartazone, um italiano cinquentão que, diziam as más línguas, pastoreava duas ovelhas Filhas de Maria, na sacristia.

É ali, instalado na última mesa, que Dozinho resiste. Só ali a tranqüilidade para olhar e, ultimamente, para escrever, antes que a procissão dos bêbados e miseráveis se interrompa na ocupação das mesas e nas solicitações gritadas e atendidas imediatamente por Oriovaldo, o garçom, sob o olhar fiscalizador do seu Almeida, da segunda geração de proprietários.

Os humores de Aracy começam a atrapalhar os pensamentos de Dozinho. Os deles, mesmo, e os dela, própria. Aracy delira. “Quanto será que custa um sino de bronze da Itália, Dozinho?” Ora, veja... “Quanto você acha que vale o terreno do bar, Dozinho?” Tem cabimento? Deve ser a idade. Deve ser porque não tivera filhos. Útero seco, o dela. O dele, não. O dele é um útero quente e fértil: a mesa do bar.

Dozinho se integra ao ambiente pela cor mortiça, palidez pela constância dos dias que no bar se perde, bambo como as cadeiras nas seguidas idas ao mictório por ingestão das garrafas de cerveja que lhe faz, ainda, embotado na conclusão do romance com o qual a todos diz ganhará a notoriedade literária.

Dozinho só desprega o olhar das páginas que trazem a inutilidade dos seus pensamentos para o copo ou para um evento ou outro, muito raros por sinal, que traga maior movimentação à praça.

Tantos projetos perdidos no achado de Aracy; num casamento que o levara parte da vida ao caminhar entre as duas monotonias, da casa e do bar. Casa e bar? Mas se foram tantas às vezes que se confundiram sobre a melhor ou pior acolhida.

Histórias perdidas em soluços de embriaguez. Confusas histórias intermináveis, assim como sua própria vida que lhe parecia não vir a ter desfecho. E a obsessiva curiosidade de Aracy aos valores que nada lhe diziam.

Temia vir a se tornar uma figura folclórica da cidade, como a Maria Benzedeira ou o João do Sebo, este por confundido pelos mal informados como dono do açougue e, na verdade, dono da papelaria, onde, a um canto, amontoavam-se volumes desprezados, com suas páginas consumidas mais pelos cupins do que pelos olhos de seus antigos donos.

Havia, como dona Adelaide Maria, misto de mulher letrada e do lar, um ou outro que não aceitavam vulgos que não se enquadrassem aos hábitos e costumes daquela pequena cidade interiorana e para os quais João era João, sem o Sebo. Mas isso é outra história que não desmerece o folclore que abundava a região, enriquecido pelos ditos, benditos e malditos do que aqui vai narrado.

Já não eram mais perguntas, mas verdadeiro martírio a curiosidade de Aracy. Aquilo o desconcentrava e na linha que estivesse por ali parava. E não voltava ao texto, posto numa acumulação de calhamaços, fruto da perda da tranqüilidade que imaginara encontrar na mesa do bar, seu quente útero, já agora nem sempre fértil, ainda que úmido pelas garrafas esvaziadas à sua frente.

Dali se distanciava ao final de cada tarde, respondendo aos cumprimentos com um toque no chapéu desabado como sua própria vida.

A crença de Dozinho na fama que conquistaria pelas letras levava-o a imaginar-se numa estátua ou mesmo que fosse num busto de bronze como o de Graciliano Ramos, próximo ao palanque de onde vinham os sons nas domingueiras da praça, trazendo junto os perfumes das senhoras e senhoritas no ir e vir pela calçada em frente ao bar a misturar-se aos dos jasmineiros, aqui e ali despontados pelo carinho de Josenildo, o orgulhoso jardineiro que cuidava para que o Pau Brasil fosse sempre lembrado pelas mais afoitas.
.
Mas para tanto, dizia Dozinho, duas coisas teriam que ser terminadas, ambas de desfechos imprevisíveis: o romance e sua própria vida.

Próximo de poder ser titulado autor e lá vinha o massacre de Aracy: "Dozinho, quanto terá custado o funeral de seu Sidônio?" E mais uma vez interrompia a página do romance, ainda que chegando às letras como o personagem que alimentou essa história.

II
GLORIOSOS

– Dozinho!

O grito ecoa no quarto como um trovão. Abre um olho e lá está Aracy a sacudir a folha de papel. Abre um olho, já que os dois seria impossível pela carraspana da véspera.

– Levanta homem de Deus... Finalmente chegou a resposta da editora, junto com o contrato.

Ora, isso lá é jeito de acordar alguém? Contrato, que contrato? Mas Aracy estava ali sacudindo a folha de papel qual bandeira agitada num estranho festival... Quem dissera isso? Ah, sim, Orestes Barbosa, em “Chão de Estrelas”, tantas vezes tocada na máquina de moedas no fundo do bar, o palco sem lume dos andrajosos freqüentadores quase todos sustentados por suas mulheres fiandeiras da cooperativa de artesanato.

Lá fora, na rua, a notícia já chegara e um grupo aguardava na porta sua aparição.

– Vá lá Dozinho, dê apenas um aceno para eles. Não imagina o que isso vai representar para a nossa cidade. Quem sabe seu romance vira roteiro em Hollywood? Não viu o Paulo Coelho?

Mas como? De pijama?... Cabelos em pé, nem mesmo os dentes escovados e aquele gosto de guarda-chuva na boca... Ah, coisa mais idiota, como se alguém já o tivesse chupado.

A menção do Paulo Coelho encheu-o de brios. Comparar o seu romance aos do autor de O Alquimista era não reconhecer seus méritos literários. Que se danasse Hollywood... Qual obra de Machado de Assis merecera as atenções dos produtores e diretores hollywoodianos?

Jogou por cima do pijama o paletó de tantos invernos e quase empurrado por Aracy chegou à janela. Lá estava Alaíde Camargo, mulher faladeira, Antônio Dentinho, Maruê Lagartixa, tido como dos melhores no pau de sebo das quermesses, sem falar na fina flor da boemia local, espantosamente sóbria puxada pelos vivas de Chico Bolha. Era de se esperar que a glória chegasse, tantos foram os repasses dados a obra.

– Dois milhões, Dozinho, ouviu bem, dois miiiiiiiiiiiiilhões!

Os milhões na boca de Aracy se tornavam maiores ainda. Havia, finalmente, embarcado nos delírios dela! Sabia que chegaria o momento em que, sendo o inimigo mais forte, se renderia a ele – Corrumpunt bonos mores colloquia mala, latinou, capitulando.

E como lhe pareciam reais aquelas fisionomias conhecidas, ao pé de sua janela. Não seria também real o jacaré que morava embaixo da cama de Chico Bolha e que o recebia todas as madrugadas, na volta da esbórnia? Tudo é possível, tudo é plausível, tudo é real, até aquelas pétalas que o pequeno grupo lhe atirava.

Recuou três passos e imediatamente se arrependeu. Melhor estava encarando a platéia que as chispas verdes dos olhos pequeninos de Aracy. Claro, ela sempre soubera, o talento dele era insofismável (caprichava nas palavras, a bruaca); fizera bem em contrariar o pai e casar-se com ele (arrependia-se de não ter ouvido o sogro – é minha filha, mas é uma megera); finalmente a honra e a glória que ele merecia (até babava-se de tanto gosto, a vaca).

Alisou a gola do paletó e extraiu do fundo de sua inapetência as palavras jamais escandidas:

– Aracy, eu vou ao bar...

Esfregava-lhe na cara uma redondilha maior, vingança suprema de tantos anos em que ela, alexandrinamente, lhe atirara, certeira, seu nome de solteira – Aracy Aparecida Gomes da Cruz.

– Claro, vamos, sim, meu... Meu... Meu imortal!

Voltou à janela, magnânimo, acenou, deu as costas e desceu as escadas, casaco puído e calças de pijama (ora, já não havia saído nu da cintura pra baixo do quarto de Isolda Bela Puta em tempos de vou-tirar-você-deste-lugar?).

Recuperava um pedaço de si mesmo a cada passo vencido entre a casa e o bar. Atrás dele, a “turba ímpia e nojosa” e, no meio dela Aracy, com agilidade de menina, organizava uma ação entre amigos para a compra do fardão da Academia.

Mas como fardão, se nem candidato se lançara?

– Dozinho, quanto deve custar o fardão?

Nem mesmo a futura imortalidade o poupava da curiosidade de Aracy com relação a custos, fossem do que fossem.

Nos tempos de Sarney na Presidência da República, ela ganhara fama a perguntar sobre preços, imbuída da condição de “fiscal”... Ah, sim, Sarney, agora seu futuro companheiro dos chás de quinta-feira... E aumentaram-lhe os suores na lembrança dos chás. Refrescou-se com duas cervejas, em sucessivos brindes do Chico Bolha. Agora já não eram os chás quintafeirinos que o aqueciam, era a idéia do fardão de casimira.

– Levanta homem e larga de vagabundagem... O sol está quente lá fora e você enrolado nesse cobertor.

Dois olhos abertos, chegou-se à janela. A praça vazia pelo sol causticante abrigava o sono de Chico Bolha em um dos bancos do jardim.

– Aracy, eu vou ao bar.

III
GOZOSOS

É noite, novamente. Dozinho espia por entre a escuridão do bar o movimento da praça – Sexta-Feira da Paixão, logo a Procissão do Senhor Morto iria serpentear pelas ruas da cidade, as velas enroladas em celofane colorido teimando em espalhar espermacete nas delicadas mãos das Filhas de Maria; a matraca alternando o silêncio. O dia todo ali, refugiado, sem pronunciar palavra. Não ousava dizer mais nada depois da frase proferida pela manhã. Percebia agora a inutilidade de todas elas, todas as palavras careciam de sentido, tudo já estava escrito, tudo havia sido dito. Sem sequer abrir a boca tinha-lhe sido servida a bebida de sempre, garantira a mesma conversa recortada – o levantar de uma sobrancelha era o suficiente.

O dia todo ali, pregado àquela mesa. Não comia, não falava, não escrevia, não mijava – e isto era verdadeiramente espantoso, levando-se em conta as garrafas de cerveja que se acumulavam no canto da parede. Havia, finalmente, voltado à sua condição intra-uterina, boiava em meio ao burburinho, cenas fortuitas eram percebidas de relance, como o olhar pasmado de Chico Bolha ao testemunhar o apelo inédito e impensável de Aracy, pousando a mão em seu ombro – “Vamos para casa, Dozinho”. Deu de ombros para o companheiro, fixou-se no bater dos saltinhos baixos da mulher esquadrinhando com passos curtos não mais a volta para casa, mas para um caminho nunca dantes percorrido para perfilar-se a Procissão do Senhor Morto.

O dia todo ali e, subitamente, uma voz o arrancava de seu torpor. O trabalho de parto, iniciado pela manhã e entrado pela noite, agudizava-se. No púlpito improvisado em frente à Matriz, Verônica canta, rosto encoberto. Uma odalisca, essa Verônica – ensaiava uns passos da dança do ventre entre um “o Vós omnes” e outro, o véu escorrendo face abaixo.

Quebrantado pela lengalenga, levanta-se e segue o chamamento. "Eloì, Eloì, lema sabactàni?"

Entra na igreja, altar desnudo, santos cobertos apaixonadamente de roxo, o cheiro do jejum, do fracasso, da tristeza e do silêncio. Abstinência da palavra, porto da palavra, liturgia da palavra, das sete palavras.

Bruxuleava.

Da porta principal vê entrar o corpo do Senhor Morto, ladeado de todas as mulheres que fazem fila para lhe beijar os pés. Atrás da coluna espera que chegue a vez de Alaíde Camargo e precipita-se após o ósculo. Embriagado pelas velas e pelo silêncio, longamente “beija o beijo, não os pés”.

Não estivesse o Senhor Morto, nem mesmo ele escaparia do sobressalto diante dos repentinos arroubos de Dozinho, atracado, a pespegar beijos obscenos na faladeira Alaíde Camargo, que passou de flecha a alvo sob os olhares de mais de centena de fiéis e outro tanto de infiéis, todos agora testemunhas de uma paixão por tantos anos mantida em segredo.

Todos não. Menos Aracy, fulminada por colapso, morta na fila do Senhor Morto.

Dozinho, transfigurado, é tirado dos pés de Cristo sob o ronco de trovões que desciam dos céus, pragas e “te esconjuros” das beatas que a essa altura se acotovelavam na nave para testemunhar tamanha heresia. Instalara-se a balbúrdia na noite sacra, coisa nunca vista.

– Está tomado por satanás...

A frase passava de boca a boca, seguida de “cruz credos” e “benza Deus”, algumas já em aconselhamentos de que fosse coberta a cabeça de Cristo. E motivo havia pra isso.

Aos empurrões é retirado da Matriz. Lá fora esbarra nos vivas de Maruê Lagartixa e Chico Bolha já fora do banco da praça que lhe acolhia o sono.

Fechava-se assim o romance da vida de Dozinho, em gozos de embriaguez, naquela sexta-feira de dupla paixão – e morte – ampliada ainda mais por dona Afrodite Augusta Nogueira, mulher de Chico Bolha, que disse ter visto o Senhor Morto a piscar para Dozinho.